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Por uma escola brasileira de compliance

Por uma escola brasileira de compliance

Martim Della Valle

Bacharel e doutor pela Universidade de São Paulo. É professor visitante da International Anti-Corruption Academy em Viena, membro do conselho da Transparência Internacional Bélgica e pesquisador sênior do Centro de Estudos em Ética, Integridade e Compliance da Fundação Getulio Vargas (FGVEthics). Foi chefe global de compliance de uma das maiores empresas de bens de consumo do mundo.

A conformidade (ou compliance) é o vetor de uma revolução silenciosa no direito brasileiro. Por ser atividade gerencial e preventiva, permite uma mudança de paradigma profissional: passa-se da defesa reativa em procedimentos sancionatórios para uma atuação proativa de detecção e remediação de ilegalidades. Passa-se do “duelo” de soma zero entre acusador e acusado para a implementação, pelas próprias empresas, de sistemas capazes de prevenir, detectar e remediar infrações.

O novo paradigma demanda conciliar conhecimento jurídico com o manejo de outras ferramentas (técnicas de administração, contabilidade, ciências comportamentais etc). Incentiva o uso de técnicas de outras culturas jurídicas (especialmente a common law) e a formação profissional em grandes centros mundiais. O fato de que condutas praticadas no Brasil possam ser sancionadas em outros países (e vice-versa) e o sucesso de cooperação internacional entre autoridades criaram um incentivo inédito para tal abertura ao mundo. Incidentalmente, isso obriga profissionais do direito a se dedicar a uma dimensão negligenciada em sua formação: a eficácia.

O ferramental de compliance (ou ao menos seu vocabulário) passou a ser peça cotidiana das atividades empresariais.  Sua natureza aberta e empírica criou um processo de agregação, em que sucessivos guias, acordos, memoranda, decisões e outros documentos publicados por autoridades criaram um núcleo mais ou menos consensual de melhores práticas. Embora o fenômeno seja internacional, avançou antes e de forma mais acentuada nos EUA. Portanto, práticas que compõe o “cânon” ou benchmark global das melhores práticas têm lá sua origem. Elas foram e continuam sendo fontes inspiradoras dos programas de compliance criados no mundo e no Brasil.

Todavia, são práticas pensadas sobretudo para a corporation americana clássica de acionistas pulverizados. Lá, mesmo grandes acionistas são, em boa medida, investidores institucionais passivos, que não pretendem (ou costumam) se envolver na administração. Nessas empresas há grande proeminência da governança corporativa em relações entre órgãos de administração. Há ênfase na proteção dos acionistas contra ações ou omissões dos administradores.

Embora testadas e em geral eficazes, as regras de compliance inspiradas nos EUA podem não ser suficientes para locais em que as relações entre acionistas, controladores e administradores sejam diversas, tal como no Brasil. O país oferece desafios próprios que, obviamente, devem ser enfrentados de maneira eficaz.

A grande particularidade brasileira é o controle acionário concentrado na grande maioria das empresas: um sócio (ou grupo restrito de sócios) detém poder de controle e  muitas vezes tem participação direta na administração da sociedade.

Isso acarreta diferenças nos conflitos de agência: em vez de gerir dificuldades existentes entre os vários acionistas e a administração, os pontos de atrito centrais se darão entre os controladores e os minoritários. Há uma diferença importante em relação à corporation: a ausência dos acionistas e do conselho de administração como instância eficaz e separada de fiscalização dos atos de gerência.

Por outro lado, a prática brasileira do combate a corrupção e de compliance se desenvolveu com muita rapidez. Não é exagero dizer que autoridades brasileiras estão hoje entre as mais ativas e bem-sucedidas do mundo no que diz respeito ao enforcement anticorrupção. De modo simétrico, a prática jurídica de defesa e de compliance se desenvolveu com rapidez e qualidade.

O Brasil possui hoje massa crítica suficiente em todos os aspectos do fenômeno (casos julgados, acordos, arcabouço jurídico, autoridades, defensores, profissionais de compliance etc.) para que possa produzir soluções originais e adequadas a suas especificidades.

Para que a função de compliance cumpra sua missão fiscalizadora em sociedades em que controle e administração se aproximam ou se confundem, pode-se pensar em medidas que transitem em torno de alguns eixos: independência funcional, garantia contra retaliações, participação efetiva em processos decisórios relevantes e recursos suficientes para desempenho da função. Uma lista preliminar poderia ser a seguinte: mandato fixo que assegure estabilidade ao chefe de compliance, sujeito apenas a destituição motivada com quórum especial; recursos financeiros suficientes com orçamento pré-definido por mais de um ciclo orçamentário anual da empresa, sem prejuízo de ajustes motivados; matrizes de delegação de autoridade para incluir a equipe ou o chefe de compliance como aprovador (e, portanto, com direito a veto) de determinados tipos de operações; comitês independentes, compostos por membros não vinculados aos acionistas ou à administração, com a função de supervisionar as atividades de compliance.

São medidas que implicam certas limitações de poderes de controladores e administradores e merecem debate mais profundo sobre suas consequências. Autoridades, acionistas e profissionais de compliance devem se engajar sem medo de inovar. Temos densidade teórica e prática para esse desenvolvimento com feições brasileiras, para que evitemos o maior dos vícios jurídicos brasileiros desde a fundação do país: as leis inaplicadas, as instituições sem base na realidade. Enfim, as “ideias fora do lugar”, ou o compliance de papel.

Veja aqui o link para o artigo:

https://valor.globo.com/legislacao/coluna/por-uma-escola-brasileira-de-compliance.ghtml

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